Pular para o conteúdo

A Arte de Desorientar Jogadores

Guimble está sentado no Caranguejo Saltitante. A taverna cheira fortemente a sal e frutos do mar. Claro, não poderia ser diferente, afinal é uma cidade portuária. Ao seu redor, dezenas de pescadores e marinheiros riem e contam as famosas histórias de pescador. Um deles se gaba do peixe de 2 metros que pegou, mas que convenientemente deixou na casa do pai que mora longe.

Enquanto aproveitava sua comida, Guimble só pensava em quanto as cadeiras do lugar eram desconfortáveis. Nenhuma taverna parecia oferecer acomodações decentes para um gnomo. Ao terminar seu pensamento, um homem claramente bêbado chega até Guimble e se senta na cadeira à sua frente.

“Redonda ela é, porém chata como uma tábua”. Diz o homem, encarando Guimble. “Altar dos lordes lupinos. Pérola em seda negra, jóia no mar. Sem mudar, porém está mudando, eternamente. O que eu sou?”

Guimble pensa por um tempo e então diz: “Não sei, um farol?”

O homem responde: “Eu também não sei! A gente só matou a Esfinge e pegou o tesouro! Eu to a 30 anos com essa maldita charada me martelando na cabeça!”

O homem sai da mesa, desapontado.

Uma coisa que eu notei depois de vários anos mestrando é que se tem uma coisa que todo jogador é bom em fazer, é desorientar a si mesmo, o que dá aos mestres uma poderosa arma para:

  • Esconder informação.
  • Criar novas linhas de história.
  • Criar suspense.
  • Gastar tempo.
  • Estender uma quest.

Então, como fazer para se beneficiar de desorientação?

O primeiro passo é simplesmente dar aos jogadores uma linha que eles possam agarrar. Isso pode ser feito muito fácil, basta adicionar detalhe. Tome o seguinte cenário como exemplo:

Simon chegou à mansão de Lorde Selmnik. O convite para o jantar foi inesperado, mas veio em boa hora. Selmnik parece estar de alguma forma relacionado com o assassino que está deixando uma trilha de corpos pela cidade. É necessário investigá-lo.

Simon aperta a campainha e espera pacientemente.

Mestre: “O mordomo abre a porta, um homem de porte grande. Ele lhe dá boas vindas e te convida para entrar. Ao entrar, uma bela moça recolhe seu casaco e o pendura no cabide. O mordomo gentilmente lhe convida para fazer um tour da casa. Ao chegar na cozinha, você encontra o cozinheiro, um homem magro e alto usando um avental impecável. Em sua lapela reluz uma insígnia de prata. O cozinheiro afasta os cabelos castanhos do rosto, revelando uma cicatriz vertical perto de seu olho, e aperta sua mão.”

Baseado apenas neste cenário, por onde você imagina que os jogadores começariam a investigação? Se você respondeu “o cozinheiro”, acertou. A riqueza de detalhes dada ao cozinheiro, porém não ao mordomo ou à empregada deixa nos jogadores uma sensação de que o cozinheiro é um personagem importante na história. Tudo isso volta à velha crença dos jogadores de que “Se não é importante, o mestre não se daria ao trabalho.” Um pensamento comum de qual todo mestre pode tirar vantagem.

Então já temos nossa riqueza em detalhes apontando os jogadores para a direção errada. Tendo isso, o próximo passo é esperar que os jogadores comecem a seguir a trilha. Nesse ponto, é importante manter em mente que as pistas falsas devem levar à alguma coisa. Como exemplo, vamos alterar um pouco nosso cenário da seguinte forma:

  • O mordomo tem mais de 2 metros de altura. Sua voz é grave e seu sotaque é de origem indeterminável. O mordomo constantemente erra pronomes, indicando que ele não está falando em sua língua nativa.
  • Você viu de relance a empregada olhando atentamente para cada convidado da festa. Ela pisca para um deles e fica vermelha quando ele sorri para ela.
  • O cozinheiro permanece descrito como antes.

Agora existem 3 linhas diferentes que seus jogadores irão querer investigar já que todos os NPCs parecem ser importantes o bastante para ter tantos detalhes sobre eles. Vamos supor que eles investigaram o mordomo:

Durante toda a festa, Simon percebeu que o mordomo frequentemente desaparecia. Quando o mordomo sai novamente da sala, Simon se retira da mesa para ir ao banheiro. Ao sair de vista dos outros convidados, ele furtivamente segue o mordomo. O mordomo sobe as escadas e caminha em direção ao quarto de Selmnik. Ao chegar, Simon observa o homem alto retirar uma chave do bolso, destrancar a porta e entrar no quarto. Simon caminha silenciosamente e dá uma olhada para dentro. O mordomo está abrindo uma segunda porta no outro lado do quarto.

Imediatamente ao abrir a porta, Simon vê na outra sala várias estantes de livros. O mordomo entra e fecha a porta atrás dele.

Simon entra no quarto e avança em direção à porta, agarrando a maçaneta e abrindo a porta silenciosamente. O mordomo está examinando um livro.

“O que está fazendo?” Pergunta Simon em voz alta.

O mordomo toma um susto e se vira com medo nos olhos. Ele explica que imigrou de sua terra natal pouco tempo atrás e que está completamente perdido na nova cultura. Ele revela que entra secretamente na biblioteca de Lorde Selmnik para estudar. Ele suplica à Simon que não conte nada à Selmnik por medo de ser demitido.

Nesse ponto é claro que este não é o caminho certo, mas ao invés de simplesmente jogar uma parede de tijolos na frente, o mestre recompensou o jogador com uma descoberta, mesmo que não esteja relacionada à investigação. Isso mostra claramente para os jogadores que existe mais no mundo do que a “quest principal”, dá à eles um grande senso de liberdade, permite novas interações e encoraja imersão e investigação. O mordomo e o cozinheiro podem ser pistas falsas, mas ao investigar a empregada, os jogadores descobrem que ela fez um par de buracos na parede da sala de jantar e gosta de pintar quadros dos convidados secretamente. Ao encontrar a sala com os quadros, os jogadores se deparam com um quadro do assassino que estão procurando!

Mas isso é só o que o Mestre pode fazer. Jogadores em si são exímios auto-desorientadores, e o mestre pode tirar vantagem disso para expandir a própria história e parecer o foda por ter “planejado” histórias. Este é o maior aliado Mestre que prefere improvisar tudo.

Por exemplo: O paladino do grupo está paranoico que o bom e velho mago que dá quests está possuído e está na verdade manipulando o grupo? Bem, talvez agora ele esteja, e sim, já que vocês perguntaram, eu havia planejado isso desde o início. Sim, eu sei que eu sou um gênio!

E é assim que você pode tirar vantagem de desorientação para expandir sua história, improvisar novas quests e dar mais sabor ao mundo, mostrando pros jogadores que não se trata apenas de uma história linear, mas sim um mundo vivo e cheio de possibilidades.

Ah, e sobre o primeiro texto lá em cima do post? Aquilo realmente aconteceu em uma sessão recente da minha mesa. Guimble foi falar com o homem tentando tirar mais informações dele sobre o tesouro. Eu realmente não planejei nada para ele, foi só uma piada com aventureiros que ignoram história e resolvem tudo na porrada, mas meu jogador se prendeu naquilo e me deu uma nova possível história.

4 comentários em “A Arte de Desorientar Jogadores”

  1. “Altar dos lordes lupinos. Pérola em seda negra, jóia no mar. Sem mudar, porém está mudando, eternamente. O que eu sou?”

    Seria a lua?

  2. Pingback: O Livro do Mestre: Um Guia Para Novos Mestres | 4d6

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *